O Deus limpo e ossificado | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
2000
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O Deus limpo e ossificado

Nesse mês de julho em que comemoro os nove anos da página, publico um pequeno trecho editado do capítulo 22 de meu romance Estive lá fora. O cenário é o Recife, a cidade presente em quase tudo o que escrevo. Boa leitura e muito obrigado aos que aceitaram o convite para curtir a página.

Hoje à tarde, enquanto caminhava pelas ruas do Recife, desejando encontrar meu irmão Geraldo em algum beco, ouvi os sinos da Basílica do Carmo, lembrei nosso infeliz tio João Domísio que se encantou com essa música. Resolvi atender seu pedido: não adiar o meu reencontro com Deus. Sempre tive algumas pendências com São Francisco – o meu delírio da ressurreição e a promessa que você fez para eu pagar, caso escapasse de uma queda que sofri com apenas dezoito dias de nascido. Lembra? A senhora prometeu que eu iria à romaria de Canindé, vestido num hábito marrom, descalço, levando uma esmola. Nunca saldei essa promessa. Então resolvi entrar no Convento Franciscano com a igreja de Santo Antônio ao lado, na rua do Imperador. O Recife deserto deixa ver a beleza dos prédios, tons de vermelho, azul e amarelo que apenas os moradores dos trópicos se atrevem a usar. O sol avança por detalhes ocultos, revelando-os. Nessas horas, acho que não existe cidade mais bonita do que essa e tenho raiva dos que a maltratam.

Cheguei pela calçada oposta, querendo mais espaço para apreciar de longe o conjunto franciscano. Do lado de fora, interditados por grades, dezenas de miseráveis, os pobrezinhos de Santo Antônio e São Francisco, disputavam migalhas que as famílias ricas e piedosas traziam nos seus carros de luxo e mandavam os motoristas distribuir. Eu já visitara outras vezes a igreja e o convento, sabia o que existia lá dentro, oculto pelas paredes externas. Sobretudo conhecia a Capela Dourada da Ordem Terceira de São Francisco de Assis da Penitência, construída pelos devotos do Irmãozinho de Deus, que pregava a pobreza e a renúncia aos bens materiais. Já estive em boa parte das igrejas de Recife e Olinda e sempre me impressiona a ênfase dada pelos guias aos quilos de ouro gastos nos douramentos das talhas. Sei o que tudo isso custou. Sei que a vida média de um escravo trabalhando no fundo de uma mina era de cerca de três anos, pouco mais que a garantia de uma máquina de lavar roupa. Não me considere um revoltado, mas não deixa de espantar-me que nenhum daqueles miseráveis do lado de fora transponha o umbral da igreja, nenhum exija para si os espaços feudalmente ocupados pelos frades, há quatrocentos anos.

Agora vamos ao meu dilema, o de todo jovem que deixou as coisas velhas para trás, porém não encontra nada no novo que possa considerar seu. Entrei no convento franciscano, olhei as imagens assombradas dos santos, senti atração e repulsa diante do Cristo desfigurado pela dor, as costelas sobressaindo, o rosto escavado, as chagas escorrendo sangue. Tudo em meio ao esplendor do ouro, da opulência dos azulejos portugueses, da arquitetura exuberante. Beleza e horror juntos, causando alegria e medo. Tive consciência do mal que a estética católica nos causou ao longo de séculos, com sua tirania de pecado e culpa que se expiam apenas pela penitência e sofrimento. É terrível já nascer culpado. É insuportável carregar a cruz de um morto, um corpo boiando nas águas de um rio, o fantasma de um irmão que nunca vejo e nem sei mais se vive. Você não se compadece de mim? Quando vi as telas sombrias com os santos mutilados, busquei a lembrança de Paula nua, viva, pulsante de sensualidade e desejo de transar comigo. Convenci-me que prefiro o que está do lado de fora, a saúde do sexo, o direito ao gozo.

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