A dança do poder | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
1984
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A dança do poder

No balé Clitemnestra, da coreógrafa americana Martha Graham, há uma passagem que me marcou, retornando sempre às minhas reflexões sobre o poder. Vocês lembram a tragédia grega. Agamêmnon, irmão de Menelau e cunhado de Helena, assume o comando dos gregos, na guerra contra Troia. Ao chegarem à baia de Áulis, de onde partirão os navios, o rei comandante se ocupa a maior parte do tempo em caçadas.

No seu afã de caçador, Agamêmnon abate uma cerva consagrada à deusa virgem Ártemis. Enfurecida com o mortal, a deusa manda baixar uma calmaria sobre o oceano e os gregos não têm como partir, por falta de ventos que inflem as velas das embarcações.

Consultam o oráculo e a sentença não poderia ser mais cruel: os ventos retornarão se o rei sacrificar sua filha mais velha, Ifigênia. Agamêmnon manda buscar a jovem, mentindo que irá casá-la com Aquiles. A inocente moça chega na companhia da mãe Clitemnestra, que desconhecia a trama do marido. Ao descobrir a cilada, ela faz todos os esforços para salvar a filha, mas não consegue evitar o revoltante sacrifício.

O vento sopra, os gregos partem e combatem durante dez anos às portas de Troia. Quando Agamêmnon volta para casa, a rainha tinha colocado um amante no leito do esposo.

A dança de Martha Graham é arrepiante. A rainha Clitemnestra, obcecada pelo desejo de vingar a filha, trama a morte do marido. Ela e o amante Egisto decidem assassiná-lo e se apoderarem do trono de Micenas. Agamêmnon trouxera como presa de guerra a princesa Cassandra, filha do rei troiano Príamo, que tinha o dom de prever o futuro. Mas sobre ela pesava uma maldição de que ninguém acreditaria em suas profecias. Cassandra adverte o rei sobre a trama que o levará à morte, mas ele não crê em suas palavras.

A cena que tanto me marcou é a seguinte: Clitemnestra finge alegria com o retorno do marido e lhe prepara um banho. Enquanto ele se entrega ao deleite, a rainha o mata com um punhal. Transtornada de poder e sangue, ela joga sobre as costas o manto do rei e caminha com ele pelo palácio.

O Destino, representado por um bailarino de estatura descomunal, realçada pelos coturnos do teatro grego, põe o cajado sobre o manto que a rainha enverga e ele cai no chão. A realeza se esvai. O espectador estremece diante da representação de quanto é fugaz o poder humano. Não há texto, apenas um cajado que prende o manto ao chão, tirando da rainha o amparo de um símbolo antigo de poder.

Clitemnestra é morta pelos dois filhos, Orestes e Electra, que vingam o pai. Tocada pela tragédia da rainha infeliz, Martha Graham imaginou um final feliz, em que mãe e filhos se reconciliam e são perdoados pelos deuses.

Não sei que deuses nos perdoarão a vaidade e o desejo de poder. Sei que todas as vezes em que me deixo contaminar por essa quimera, O Destino, que nunca descansa nem fecha os olhos, atua com uma precisão absoluta. O barulho da queda do manto eu escuto nos sintomas de uma gripe, numa dor de coluna, num transtorno qualquer da saúde.

As doenças, as calamidades, as guerras e a morte estabelecem limites ao poder dos homens. São a prova de nossa fragilidade, nos advertem a avaliar melhor os grandes feitos e o esforço em realiza-los. É necessário não perder a medida das coisas. Como está escrito no Tao: quem se ergue na ponta dos pés, não pode ficar por muito tempo.

     

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