Sem consolo de Deus, nem do Diabo | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Sem consolo de Deus, nem do Diabo

Acho que li em algum conto de I. L. Peretz ou em Bashevis Singer, judeus que escreveram em ídiche, que no judaísmo ortodoxo são necessários oito homens, suponho serem todos amigos, para carregar o caixão do morto. Começo a temer que não terei esse número, quando chegar a hora de meu enterro.

Nos últimos quatro anos me indispus com várias pessoas próximas a mim, tempo em que andei desesperado com as eleições de Jair Bolsonaro e a explosão do Bolsonarismo, o isolamento por conta da Covid19 e a queda de nosso país naquilo que os gregos chamavam de Caos, sem qualquer esperança de retorno ao Cosmos.

Em gradações variadas, todos enlouquecemos. Para ser histórico, desde 2016. Não se trata da loucura relatada por Darcy Ribeiro nos seus livros, quando um índio da tribo era possuído pela Ira ou pelos Maus Espíritos, quebrava tudo em volta, ateava fogo na oca e as pessoas não revidavam, apenas saíam para longe, esperavam o acesso de loucura ceder e depois refaziam os estragos.

Também não se trata da fúria divina, a do Cristo com os vendedores do templo. Nem a crônica gaiata de Gabriel Garcia Marques dando uns tapas em Vargas Llosa ou Ariano Suassuna batendo no jornalista Celso Marconi. Minha raiva fica mais próxima da impotência política, da histeria ou da possessão espiritual.

Claude Levi Strauss relata em Tristes trópicos, livro sobre a vivência com os índios brasileiros, que certa noite um tuxaua começou a narrar de maneira extraordinária, histórias sobre pássaros, animais, guerreiros e espíritos. Fumava, cantava, imitando os personagens com sons e gestos. De repente, foi possuído pelos ancestrais, agitou-se, agrediu e bateu nas pessoas. Depois de um tempo, acalmou-se e dormiu. No dia seguinte, todos o tratavam como se nada tivesse acontecido. Eram índios não cristianizados – felizmente –, desconheciam os Evangelhos, onde se prega que se deve perdoar 70 vezes 7.

Nas vezes em que magoei amigos, possuído pela raiva, esperei o perdão, que não veio. Acho que a minha amizade não interessava aos supostos amigos, já que não sobreviveu a minha explosão de fúria. Costumo disfarçar a raiva e a frustração de anos, em gentileza e cordialidade. O correto seria desferir um coice a cada sinal de alerta. Porém guardo o rancor como quem represa água num açude, até o dia em que as paredes rompem.

É hora da luta sair do papel, diz o samba da Gaviões, mas nunca sai. Todos preferem assistir ao desfile. A raiva não é ruim, pode tornar-se um motor da ação. Sou de agir, mesmo que o Tao garanta que pelo não agir se age. Espíritos me atormentam, do bem e do mal. Vivo prenhe de criatividade, agito-me como o tuxaua que contava histórias fantásticas. Acho natural exceder-me de vez em quando.

Cresci dividido entre os santos de minha mãe e os demônios de meu pai. Cheguei a aspirar à santidade, mas nos últimos anos me inclinei à voz do pai endiabrado. Releio o grego Níkos Kazantzákis, embora nem se trate de um autor preferido. Consola-me saber que ele viveu o mesmo desespero, a incompreensão e o abandono dos que magoava, no esforço de criação.

À selvagem pedagogia do meu pai devo a resistência e a persistência que sempre me defenderam nos momentos difíceis. A essa selvageria devo todos os pensamentos insubmissos que, agora, no fim da minha vida, me governam e não aceitam consolo nem de Deus, nem do Diabo. 

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