Sartoris, o romance pouco mencionado de William Faulkner | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Sartoris, o romance pouco mencionado de William Faulkner

“A tia Jenny contou a história pela primeira vez, assim que veio morar com eles”. E tantas outras vezes repetiu a saga dos Sartoris que “… à medida que envelhecia, a própria história tornava-se cada vez mais complexa, adquirindo um esplendor brando como o de vinho envelhecido…”

Este poderia ser o início de Sartoris, de William Faulkner, publicado em 1929, pouco antes de O som e a fúria, romance que consagrou seu estilo. Mas a senhorita Jenny du Pres não é uma Sherazade, embora seja a guardiã da memória dos Sartoris, pontuando o romance com falas precisas e pouco generosas sobre gerações de homens obsessivamente chamados John e Bayard Sartoris, como se ao receberem esses nomes estivessem condenados a ser arrogantes, estouvados e tolos, e a terem um final trágico.

Faulkner não parecia preocupado com as dificuldades do leitor em acompanhar as aventuras dos seus anti-herois, narradas numa cronologia arbitrária, em idas e vindas no tempo situado entre a Guerra Civil Americana e o pós Segunda Guerra. O coronel John Sartoris, morto em 1876, depois de sobreviver à Guerra de Secessão, parece repetir-se no bisneto de mesmo nome, na forma arrogante como ambos encaram a morte, achando que um Sartoris não se deixa apanhar por uma doença, numa cama. 

Embora divague sobre outros Sartoris, o romance se ocupa principalmente de Bayard velho, nascido tarde demais para uma guerra e cedo demais para a guerra seguinte, e de seus netos John e Bayard. Retornando da Europa, onde serviu como piloto ao lado do irmão, o jovem Bayard chega à casa do avô e da tia Jenny como um espectro agressivo e dissoluto, dilacerado pela perda do irmão gêmeo, referida através de imagens imprecisas, um pesadelo em que John se precipita com o avião numa brincadeira suicida, legando ao irmão o sentimento de que poderia tê-lo salvo e a culpa assassina da qual nunca conseguirá livrar-se.

Movido por uma pulsão destrutiva e pelo desejo de morte violenta, o Bayard Jovem pilota seu carro em alta velocidade, sem importar-se com a própria vida nem com a dos outros, envolvendo-se em repetidos acidentes. Fumando e bebendo desbragadamente, esse jovem trágico de 27 anos imaginado por Faulkner não revela um traço de compaixão, um sentimento que o nivele aos homens comuns, aparecendo como um Aquiles sem qualquer horror ao sacrifício, desde que isto lhe confira a glória. Tia Jenny afirma que a única pessoa a quem ele amava era o seu irmão gêmeo John, morto em consequência da arrogância e de certa imbecilidade comum a todos os outros Sartoris.

Os relatos dramáticos acontecem no romance de forma ligeira, precedidos de anúncios e seguidos de longas distensões, como no teatro shakespeariano. Assim é na morte do Bayard Velho, cujo coração não resiste às peripécias do neto ao volante, enquanto viajava ao lado dele. Após esse acontecimento, que não volta a ser referido no restante do livro, o jovem Bayard foge da cidade, da esposa grávida Narcissa, da velha tia Jenny, seguindo-se uma longa narrativa de caçadas, em que são introduzidos personagens alheios à trama. Sem herdeiros que o velem, ocorre a tia Jenny que os Sartoris haviam pregado uma peça no Bayard Velho, “recusando-lhe a oportunidade de aventuras e depois lhe negando o privilégio de ser enterrado por homens, os quais teriam inventado algum motivo de vanglória” para inscrever na sua lápide. 

Embora várias tramas paralelas se esbocem no romance, ocupando um bom número de páginas, como a do guarda-livros Snopes, que nutre uma paixão doentia pela jovem Narcissa, elas não se desenvolvem e o leitor fica a imaginar o que poderia ter acontecido. Snopes envia cartas anônimas para Narcissa, ameaça assassinar o homem por quem ela venha a apaixonar-se, vigia a casa da moça, chega a invadir o quarto dela. Imaginamos desfechos que se tornaram marca do cinema americano, assassinatos macabros, estupros, investigação policial, ingredientes da cultura americana paranóica e puritana, mas Faulkner deixa essas histórias paralelas sem desfecho, não as valoriza, como se representassem um mero pano de fundo à saga dos Sartoris.

O Mississipi da década de 1920 não parece muito diferente do que lemos sobre os estados americanos do Sul, no tempo da escravidão. Faulkner não é nada politicamente correto, se referindo aos pretos como preguiçosos, indolentes, morosos e com certa lascívia, todos os estereótipos que impingiram à raça negra. Os pretos tratam os brancos por brancos. Os brancos chamam os pretos de pretos. Não há pano morno. Essa crueza pode escandalizar aos californianos de hoje. Faulkner não ameniza nas tintas de quase ninguém, a não ser da jovem Narcissa e de tia Jenny – dura, empertigada, altiva e generosa –, que zela pela sepultura do criado preto Simon, serviçal da família durante toda vida. Ela o imagina como mais um Sartoris, concluindo por fim que não, porque ele possuía humor. Bem diferente da estátua do coronel John Sartoris, erguida sobre um pedestal de pedra num cemitério próximo ao que repousa Simon, de sobrecasaca e cabeça descoberta, mantendo um gesto de orgulho altivo que se repetiu geração após geração com fatídica fidelidade.

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