O mundo dos mortos | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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O mundo dos mortos

Em Memória da casa dos mortos, seu relato da prisão siberiana, Dostoiévski reúne personagens da escória da sociedade russa, tocados pela espiritualidade.

Memórias da casa dos mortos não segue os padrões dos romances mais famosos de Dostoiévski, embora encontremos nele os arcabouços dessas futuras obras. Trata-se de um livro de recordações, simplesmente. Sofridas recordações. Preso em abril de 1849, por conta de suas atividades anti-czaristas, o escritor é condenado à morte em novembro do mesmo ano. Às seis horas da manhã do dia 22 de dezembro, é levado com outros prisioneiros para execução. Na praça nevada, caminham vestidos de estopa, perfilam-se junto a um velho muro e esperam as balas que serão disparadas pelos fuzis dos soldados. Ao invés de estampidos escutam o toque de um clarim. A cerimônia se interrompe e um auditor imperial anuncia que a pena de morte foi comutada em prisão com trabalhos forçados na Sibéria. Dostoiévski ficará detido na “casa dos mortos” – o nome mais adequado que encontrou para seu cárcere em Omsk, na Sibéria Ocidental – até 1854. Depois cumprirá mais cinco anos de pena servindo como soldado raso de uma corporação. A vivência na prisão marcou profundamente o autor e seus futuros romances. No retorno a São Petersburgo, em 1859, já não é o mesmo jovem que seguira para a Sibéria na véspera de Natal, levando na pequena bagagem um único livro: um exemplar dos Evangelhos.

Um livro dentro do outro

Em Memórias da casa dos mortos Dostoiévski lança mão de um recurso literário muito usado, tanto no romantismo como no realismo, que é o de inventar um personagem para assumir a voz do autor, o que empresta às memórias um caráter ficcional. Alieksandr Pietróvitch Goriântchikov é o nome criado por Dostoiévski para um homem misterioso, extremamente pálido e seco, de uns 35 anos, baixinho e adoentado, que dá aulas particulares a crianças e redige petições, numa remota aldeia da Sibéria. Assassinou a esposa no primeiro ano de casamento, por ciúme, e se entregou à polícia, confessando o crime. Foi condenado, mas teve a pena reduzida. Quando é apresentado aos leitores já está em liberdade e mora num quarto alugado a uma velha senhora, que possui uma filha tuberculosa e uma menina de dez anos.

Alieksandr Pietróvith aparece num capítulo introdutório, escrito por um segundo narrador, o que camufla ainda mais Dostoiévski, o verdadeiro autor das memórias. Segundo o relato, Alieksandr Pietróvith é um nobre de posses, que não retornou à família após ser libertado, preferindo continuar na Sibéria, numa pequena vila de mil a dois mil habitantes. Vive em extrema penúria, esquecido e recluso no quartinho miserável. Supõe-se que é culto, embora não se encontrem livros em sua casa. Hostil, rejeita a aproximação das pessoas e entra em pânico quando o interrogam acerca de seu passado. No entanto, manifesta profundo amor pela meninazinha filha da senhora que o hospeda, a quem ensina a ler. Essa afeição se torna mais forte quando ele descobre que a menina se chama Kátia. O motivo não é explicado. Seria esse o nome da esposa assassinada? Talvez, porque uma das poucas saídas de Alieksandr de seu universo fechado é para a igreja, onde ouve uma missa de réquiem no dia de Santa Ekatierina, de cujo nome deriva o diminutivo Kátia.

O narrador da introdução ausenta-se três meses da pequena aldeia e, ao voltar, sabe da morte de Alieksandr Pietróvitch, no mais completo abandono, sem cuidados médicos e sem atenção de amigos. Movido pela curiosidade que o estranho lhe despertara o narrador visita a casa da hospedeira e lá descobre, no meio de papéis velhos, um caderno com o título de ‘Cenas da casa dos mortos’, que vêm a ser as Memórias da casa dos mortos, anotações do próprio Dostoiévski nos seus anos de cárcere, mais tarde transformadas em romance, e que no livro são atribuídas ao estranho Alieksandr Pietróvitch.

“O ser que se habitua a tudo”

“Creio que a melhor definição que posso dar do homem é a de que se trata de um ser que se habitua a tudo”, escreve Dostoiévski nas primeiras páginas das Memórias, quando experimenta as impressões do presídio em que viverá encerrado com outros duzentos e cinqüenta presos, durante cinco anos. Mais adiante, reconheceremos a identificação da sua angústia com o mundo sofredor que o cerca, como na fórmula budista “Isto és tu”. Dostoiévski se reconhece em cada um daqueles homens. Uma misericórdia cristã ilimitada e a tentativa de compreender pessoas que praticaram as ações mais abjetas fazem do romancista um profundo investigador da alma e da psique humana, só comparável a Shakespeare. E para quem deseja ler os seus romances da maturidade, nada melhor que começar pelas Memórias da casa dos mortos, reconhecendo esboços de personagens desenvolvidos mais tarde de forma completa e bem acabada. Na Casa, todos os tipos humanos de uma Rússia que pulsa e vive para além das paliçadas estão representados e através deles o restante do mundo.

Os primeiros dias são os mais difíceis para o jovem que sofre ataques de epilepsia e vive boa parte da reclusão internado numa enfermaria, sob cuidados médicos. Não consegue comer nada, alimenta-se unicamente de chá. Ele faz parte de um pequeno grupo de aristocratas, desprezados pelos presos comuns, homens do povo que se habituam mais facilmente às trapaças, roubos e brigas da prisão. Cedo, o nosso personagem narrador descobre a força que o dinheiro possui naquele mundo e que sem ele as pessoas não suportariam viver. Com o dinheiro se compram favores, comida, roupas, fumo, bebidas, o trabalho subserviente de outros presos e até mesmo o sexo com mulheres. Tudo se negocia, tudo possui valor entre as paliçadas, até os trapos mais encardidos e rotos, botas de solado gasto, esteiras velhas e capotes remendados.

O trabalho mantém os prisioneiros vivos: o forçado, que realizam buscando o máximo de qualidade; e o trabalho individual, proibido, mas a que todos se entregam quando são fechados à noite em grupos de vinte e cinco, em celas insuportavelmente fétidas. À luz de tocos de velas, ferreiros, ourives, costureiros, sapateiros, remendões, homens dos mais variados ofícios aprontam encomendas recebidas de fora da prisão. Juntam dinheiro com o plano de gastá-lo de uma só vez. Na data programada, vestem roupas de cores berrantes, encomendam um almoço com carnes e bebem muita aguardente, até caírem inconscientes. Alguns se agitam, brigam, mas são contidos pelos outros presos, que admiram o festeiro envaidecido, capaz de gastar num único dia o que ganhou em um ano.

Alguns dos mortos

Entre os prisioneiros se encontravam os tártaros do Daguestão. Eram três irmãos: dois já homens maduros e um rapaz de apenas vinte e dois anos, de rosto lindíssimo, inteligente e ao mesmo tempo doce e cândido. Esse jovem que dormia ao lado do narrador cativou-o desde o primeiro instante. Chamava-se Ali e possuía uma alma tão naturalmente bela, a tal ponto favorecida por Deus, que seria impossível corrompê-lo em qualquer situação ou lugar. Dostoiévski, numa carta da prisão, considerou o encontro com Ali um dos mais importantes de sua vida, e foi ele que serviu de modelo a dois personagens de seus romances: Aliócha, de Os irmãos Karamázovi, e o príncipe Míchkin, de O idiota.  Como uma criatura tão boa e privilegiada foi parar no meio de facínoras da pior qualidade?

Um dia, o irmão mais velho de Ali (ele possuía cinco irmãos mais velhos) ordenou-lhe que pusesse o gorro e montasse a cavalo para acompanhá-lo num assalto. Entre os montanheses do Cáucaso o respeito pelo irmão mais velho é tão elevado que Ali sequer pensou em perguntar aonde iam. No caminho, encontraram um rico mercador armênio que eles mataram, juntamente com todo o séqüito, roubando suas mercadorias. Presos e julgados, os juízes foram complacentes com o rapaz, condenando-o a apenas quatro anos de reclusão. Dos cinco irmãos, dois vieram juntos com Ali para a casa dos mortos e os outros três foram enviados para os trabalhos nas minas. Essa é a história de Ali, a quem o personagem narrador ensinou a ler e a escrever, e em quem reconheceu um modelo de bondade que o povo russo devia tomar como exemplo.

Dezenas de outras histórias e traçados de perfis humanos estão nas Memórias da casa dos mortos, muitos deles reconhecíveis nos romances posteriores de Dostoiévski. É um provocante trabalho de investigação buscar reconhecer quem são esses personagens ocultos.

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