Cristo nasceu em Macujê | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Cristo nasceu em Macujê

Aposto que vocês não conhecem Macujê. Nem sabem que é um distrito de Aliança, na Mata Norte de Pernambuco. Querem aprender como se chega lá? Passando por Timbaúba, entrando para Ferreiros e seguindo um caminho de doze quilômetros por dentro dos canaviais. A estrada é de barro, esburacada e poeirenta no verão, cheia de lama e atoleiros no inverno. A única paisagem é o canavial. Os olhos celebram uma árvore, quando aparece alguma, isolada e triste no meio dos pés de cana.

Macujê é um lugar aonde só se vai a negócio. E como há poucos negócios por lá, a não ser os da cana, quase ninguém visita Macugê. Também, pra fazer o que? Se pelo menos ainda existisse uma boa reserva da nossa mata atlântica, com sua fauna e flora exuberantes… Mas botaram tudo a baixo. Não sobrou nada. Dois ou três hectares de mato estorricado, salpicados entre as canas, são nada para mim.

Nem pense em pescar em Macujê. O rio Capibaribe Mirim, aquele que inundou a periferia miserável da cidade de Goiana, transformou-se numa latrina. Antigamente, as pessoas viviam da pesca de peixes e camarões, as mulheres lavavam roupas nos remansos d’água, os meninos tomavam banho e contraiam esquistossomose. Agora, ninguém se arrisca sequer a molhar os pés.

Com todos esses defeitos, uma população pobre de três mil habitantes, a ausência de um restaurante onde se possa matar a fome, as casinhas feias, a igreja mal conservada, o calor sufocante, Macujê passou para a minha vida como o lugar onde compreendi em definitivo o significado da palavra arrogância. Isto parece brincadeira, mas juro que nunca escrevi tão sério e comovido.

Fui a Macujê pela primeira vez, trabalhar com alunos, professores e agentes comunitários numa campanha de arte educação em saneamento básico e saúde. Como não existiam espaços disponíveis, ficamos numa garagem de uma casa, instalados entre bancos velhos de ônibus, sucatas de carros, armários e mesas. Nenhum cenógrafo conceberia um lugar mais desconfortável e inadequado para uma oficina de interpretação. Um pouco abaixo do nosso local de trabalho, construíam uma estação de tratamento de esgotos. De dez em dez minutos subia um trator com sua pá carregada de barro, e no intervalo descia outro, vazio. A bomba d’água da casa, instalada na garagem, também precisava ser ligada. Os participantes, em torno de vinte e cinco, quase todos jovens, não relevavam essas interferências, que me deixavam nervoso e esgotado. Nem mesmo as pessoas olhando pelas janelas e pelo portão, pareciam incomodá-los. Prevalecia o desejo de aprender algo novo.

A vila se agitava para um grande acontecimento. No final da tarde, no pátio da igreja, se apresentariam emboladores e artistas, representando esquetes com os temas da campanha de saúde. As pessoas pronunciavam “teatro” com todos os acentos mágicos da palavra. Às três horas, largados os afazeres, amontoavam-se numa platéia improvisada no comprido da rua. Às cinco, já sabiam que o carro que traria os artistas quebrara no caminho, perto de Recife. E que a  tv Globo não faria a cobertura do evento, como prometido.

Tentamos alguns improvisos. Trouxeram caixas de som e dois microfones do local, que deformavam as vozes. Ninguém compreendia nada, por mais que gritássemos. Não havia fios de extensão, de modo que ficávamos presos à porta da igreja. Um passo à frente e tudo se desligava. Joguei os alunos da oficina no meio das pessoas. Na velocidade da luz, eu os promovi a atores. O meu assistente transformou-se em palhaço. Somente quando os titulares pisaram o palco, depois de duas horas de espera, cessou o clamor dos frustrados e escutaram-se aplausos.

Às oito horas da noite, no meio da representação, Macujê ficou envolta por uma fumaça sufocante, provocando tosse e lacrimejamento. Do alto, avistávamos incontáveis incêndios, as queimadas da cana, cercando-nos. Temi morrer assado no meio daquele inferno. Do Capibaribe Mirim, correndo sujo lá embaixo, subia a catinga do vinhoto, lançado nas águas do rio pela usina. E mais tarde, a apoteose: uma chuva de fuligem preta, o malunguinho, caindo do céu como se nevasse, numa noite de Natal europeu.

Compreendi o que significa arrogância. O descaso absoluto pelo Outro faz que joguem os dejetos das usinas nos rios, envenenem o ar, encham as casas de fuligem. Tudo isto em nome de uma economia que há muito dá sinais de falência, mantendo-se artificialmente com ajuda do Estado. A quem beneficia manter esse erro? Por que nunca se teve coragem de buscar uma outra cultura para a Zona da Mata, além da cana?

João Cabral escreveu o seu poema natalino, de morte e nascimento, descendo o Capibaribe, de Toritama a Recife. Subindo em sentido contrário, do mar até a mata, pelas águas podres do Capibaribe Mirim, chegaremos em Macujê.  Mata, ali, é um nome arbitrário, pois só existe cana. Arbitrária, também, é a vontade dos que envenenam sua gente, há tantos anos. Sem nunca atentarem para o sentido de compaixão, o sagrado ideal por que morreu o Cristo. Este que celebram no Natal, esquecidos de quem foi e para que veio. Ligados apenas nas boas castanhas portuguesas, no vinho tinto, no peru suculento, na troca de presentes.

O álcool das libações natalinas é como a fumaça da cana queimada, envolvendo Macujê. Obscurece a realidade mas não a transforma. Numa casa, onde se costuma passar fome na entre safra, nasce um “Jesuscristinho”, todo sujinho de fuligem, já de foice de cortar cana na mão.

– Seja bem vindo! Deus o salve! – dizemos.

E é tudo o que podemos fazer?

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