Monólogo | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Monólogo

(O Teatro reflete sobre ele mesmo)

Cerrada a cortina e apagado o lustre da plateia, os derradeiros espectadores transpõem minhas portas, que se fecham com barulho. Agora já não há mais público, nem palmas ou gritos de bravo. Mas o riso e o choro ainda ecoam por paredes, fosso e torre, lembrando a emoção que as pessoas sentiram. O silêncio tardará a vir. Antes dele, escutarei iluminadores, sonoplastas e técnicos, ocupados em desfazer cenários, baixar refletores, transportar microfones e fios. Nos camarins, atores se desfazem dos figurinos e da maquiagem, apressados em me deixar para trás. Esquecem que até bem pouco “brincavam de ser outro perante um ajuntamento de pessoas que brincavam de tomá-lo por aquele outro”*2. O mais puro jogo. Meu palco retorna à inexpressiva mudez de urdimentos, varas, pernas, coxias e rotunda. Mesmo sabendo que voltarei a ser uma caixa vazia, alegra imaginar-me solitário.

Há quase dois séculos vivo alucinações dirigidas. Nas manhãs frias e úmidas, percebo a irrealidade do mundo e me surpreendo com o sentimento de horror ao que assisti: amantes infelizes agonizando, reis mortos pela espada, filhos assassinando o pai. As encenações também comovem, ensinam a compreender que não sou o que sou e que é necessário estar aberto a todas as experiências, sem restrições, medo ou censura.

A música das orquestras, de quartetos de cordas, piano ou oboé, a dança dos bailarinos e as vozes de cantores e cantoras me deleitam. Acolho criaturas e criações de olhos vendados, deixo que representem no meu palco a dor e o êxtase, o reles e o sublime, o sagrado e o profano, confiando na transformação de sons, palavras e gestos na linguagem mais cara ao humano: a arte.

Durante os anos de construção, e quando era apenas um projeto, me chamavam pelo nome Teatro Provincial de Pernambuco. Depois me batizaram Teatro de Santa Isabel ou, simplesmente, Santa Isabel, em homenagem à princesa filha do imperador Pedro II. Um dia, esse senhor de barba longa, amante da fotografia, ocupou o camarote de honra e admirou a beleza dos meus traços. Faz muito tempo. Não fui apenas uma casa de espetáculos, praça de divertimentos e convivência social, mas também um lugar para o exercício da cidadania. Joaquim Nabuco afirmava que entre as minhas paredes se ganhou a causa da abolição da escravatura no Brasil, referindo-se aos discursos e eventos políticos aqui realizados.

Gostam que eu mencione a dança da bailarina Anna Pavlova, no tabuado do palco. Outras dançarinas famosas também mostraram a técnica nas pontas e no balé contemporâneo, mas a aura de glória cercava a russa, tornando-se motivo de orgulho referir sua passagem pela cidade. Castro Alves, o poeta romântico dos escravos, que viveu apenas 24 anos, conheceu a atriz Eugênia Câmara, grande amor de sua vida, durante uma apresentação da peça Dalila, de Octave Feuillet. Era comum neste espaço homens e mulheres se apaixonarem e acertarem casamento, comerciantes fecharem negócios, políticos comunicarem projetos.

Castro Alves, José Mariano, Joaquim Nabuco, nunca esquecerei seus nomes.

 

Quebre-se o cetro do Papa,

Faça-se dele uma cruz!

A púrpura sirva ao povo

Para cobrir os ombros nus.

 

Quanta atualidade na estrofe! O jovem Castro Alves recitou-a aqui? Não, não nessa casa. A memória falha. Os versos são do estudante de 18 anos, febril pela tuberculose, agitado com o ardor poético. Foram declamados numa abertura solene das aulas na Faculdade de Direito do Recife, para velhos professores estarrecidos e alunos delirantes. Tenho em comum com a faculdade apenas os ferros de nossa construção, que resguardam de incêndios. Tornei-me um espaço de convivência da cidade, o lugar mais frequentado pela elite comercial e política. Assisti à Revolução Praieira, à campanha pelo advento da República, ouvi os discursos de Martins Júnior e Silva Jardim. Quanta coisa vi! Até fantasmas. Sim, eles me habitam, não há bons teatros sem assombrações, de vivos ou mortos.

Há vários dias, uma atriz me examina e investiga, caminha por corredores olhando detalhes. Pressinto que deseja falar comigo. Evito conversas, mas hoje não conseguirei escapar à sua abordagem. Observo-a de longe. É jovem e arrogante como todas as garotas de sua idade, acredita ser possível transformar o mundo pela arte. Escondeu-se na torre e espera que todos saiam. Confunde-se com o fantasma da bailarina, uma de minhas assombrações. Sinto cansaço, preferia que me deixasse em paz.

Divago, a velhice traz lembranças. Passei por reformas, desde o incêndio que me destruiu. Cada geração tenta manter-me de pé. Vigiam para que os cupins não comam as madeiras, retocam os dourados e as tintas, substituem carpetes e lâmpadas. Às vezes acho graça do passado, lembro os precários lampiões de cena, a penumbra que favorecia encontros amorosos no salão nobre. E a mesa de luz com tampo de mármore e alavancas de ferro? Parecia a cabine de um trem. 

Incomoda a fuligem preta e o barulho dos carros, que aceleram e buzinam em torno de mim. Quando deu um concerto no meu palco, o violonista espanhol Andrés Segovia mandou interromper o trânsito para as pessoas escutarem melhor a sua música. Achei justo e aplaudi-o. Bravo! Bravo! Os ruídos conspiravam contra o silêncio e a harmonia das cordas. Chovia muito naquela noite memorável, acho que nunca mais choveu tanto no Recife.

Já não sopra a brisa que refrescava as paredes e trazia as vozes dos heróis mortos nas revoluções. Se me esforço, ouço gritos de escravos, lá de onde eram vendidos, na Rua do Bom Jesus. Como gostaria de adormecer e acordar com os sinos das igrejas de Santo Antônio, Madre de Deus e São Pedro dos Clérigos. São tristes e parecem chorar. Também alegram e trazem esperança. Memorizei os versos de um poeta: 

 

Há muito calaram sinos

pois não há quem os tanger.

Nem meninos nem meninas

tangem sinos no meu ser:

Calaram os sinos do mundo

e eu sinto a alma doer.*2

*1 Jorge Luiz Borges

*2 Ângelo Monteiro

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