Mais uma evocação do Recife | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Mais uma evocação do Recife

Na rua Paissandu, que desemboca na ponte da Madalena, alguns palacetes mal assombrados sobreviviam de pé, até a década de 1980. Eu gastava horas tentando adivinhar estilos na arquitetura eclética. As cidades se constroem com camadas superpostas de fantasias, cada geração se desfaz dos sonhos da anterior, tenta imprimir seu gosto ao presente, provar que está viva e possui vontade.

Os resultados, muitas vezes catastróficos, dão ao Recife uma feição disforme, um rosto sem linhas serenas. No início da Paissandu, casas revestidas de azulejos portugueses, com portas e janelas se abrindo diretamente na calçada, foram invadidas por moradores anônimos, gente que desconhecia a história dos casarios e arrancava os azulejos para vender aos colecionadores de antiguidades.

Empalhadores, marceneiros e catadores de lixo se perdiam em salões de festa, quartos de portas de cedro e bandeiras entalhadas em motivos florais, salas de jantar com rico assoalho de sucupira, cozinhas onde sobreviviam fogões a lenha e banheiros escuros, escondidos no fundo do quintal, entre mangueiras e jaqueiras seculares, como se envergonhasse aos antigos donos tomar banho e cumprir as necessidades do corpo.

Que canções as mulheres cantarolavam na cozinha enquanto faziam o almoço? E para as crianças dormir? Quando me autorizavam a vasculhar as ruínas, descobria no piso da sala de visitas as impressões de um piano, marcas de fogo de uma vela tombada durante a noite e manchas de sangue ou esperma nas paredes dos quartos, revelando que naqueles aposentos as pessoas se amaram e odiaram. 

Poderia investigar se o primeiro dono do casarão com batentes em pedra de cantaria era um joalheiro judeu ou um comerciante de seda. Tentar compreender o motivo das pessoas abandonarem suas antigas moradas, depois de gastarem dinheiro em projetos frustrados, e depois vê-las ir abaixo, se transformarem em estacionamento de carros. Porém esse conhecimento não me enriqueceria em imagens romanescas, melhor buscar traços suspeitos e compor o enredo de uma novela policial.

Mais abaixo na Paissandu, ficava a praça Chora Menino, onde brigaram soldados rasos amotinados e camadas pobres da população contra militares legalistas, num tempo em que Pernambuco se ressentia por ter perdido vantagens políticas e econômicas para o Sudeste, onde estabeleceu-se a Corte. Civis e soldados saquearam o Recife, assassinando seus moradores. Nem as crianças foram respeitadas.

Os corpos inocentes enterrados no chão da futura praça assombravam a cidade com seu choro. Alguns diziam que o pranto era de outros meninos, lamentando os pais mortos na escaramuça. Outros juravam ser o choro de bebês que as mães abandonavam na roda de um velho orfanato, construído nas imediações.

Qualquer que fosse a resposta, tratava-se mesmo do Recife.

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