Constrangimentos | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Constrangimentos

Na festa em que não conheço ninguém, o anfitrião me senta ao lado de um casal, imaginando afinidades. Apresenta-me como um literato nordestino – meu Deus! –, e remexe na memória em busca de algum título que possa ilustrar-me. Depois de um esforço que me desgasta a timidez, finalmente lembra:

– Ele é autor daquela pecinha… Como é mesmo? O Menino Jesus. Não é isso?

Baile do Menino Deus – corrijo envergonhado.

Não se passaram três minutos e sonho que uma nave espacial me abduz, e me deixa alguns anos de férias em Marte.   

– Então o senhor também é escritor?

Quem me faz a pergunta é a moça. Eu, que sempre tenho dúvidas se me apresente como médico ou escritor, imagino estar diante de uma poetisa ou romancista.

– Bem…

– Ele escreve, sim – garante o acompanhante. Já li um artigo dele na Continente. Era a história de uns óculos quebrados.

Agradeço a lembrança. Surpreendo-me com a objetividade do leitor, resumindo duas páginas de uma crônica, em meia linha. 

– Faz tempo que o senhor leu. Escrevi o texto há seis anos – comento constrangido.

Narrava uma experiência num teatro interativo. Escapei com vida do atentado, mas ainda me quebraram os óculos. Um artigo modesto. Preferia que o esquecessem. Mas o interlocutor junto de quem me sentaram no baile de formatura, não me perdoa. Insiste em lembrar minhas agruras.

Tento mudar de assunto, nem sei se os dois me ouvem, em meio ao barulho da orquestra e das vozes.

– Escrevi outras coisas, é verdade.

– Vi no jornal, mas não tive oportunidade de ler. O amigo podia conseguir um exemplar para mim?

– Desculpe. A editora manda poucos livros para o autor.

– Ninguém possui dinheiro para comprar tudo o que é lançado. Estabeleço prioridades. Em primeiro lugar os clássicos.

Finjo que não escutei. Por sorte, a orquestra aumentou o volume num sucesso de Roberto Carlos. Penso em tomar um chope, mas não bebo álcool. Olho para as outras mesas, são todos alienígenas. Viro-me para a moça, pedindo socorro.

– E você, escreve muito? – pergunto sem interesse, tentando escapar à berlinda.

– Adoro escrever. Depois que frequentei a oficina literária do professor Houdini, quebrei minhas amarras. Parece magia. Dez anos de psicanálise lacaniana não fizeram por mim o que ele fez.

– Compreendo.

– Escrever é mais delicioso do que comer bolo de chocolate com calda de caramelo. Você não acha?

– Bem…

– Isso mesmo, faz um bem danado. Quando acabei meu último namoro, enchi um caderno de lágrimas e poemas. Escute esses versos:

Partes sem fechar a porta

E na manhã de outono

O frio invade nossa casa.

O que acha?

– Talvez…

– Gosto muito da solução do frio adentrando a intimidade do lar, enquanto um coração enregela de sofrimento.

– De fato…

– Eu falo para todo mundo, essa moça é um dos maiores talentos do Recife. Só a cegueira dos editores e críticos justifica não ter estourado nas paradas – fala o acompanhante.

E eu, que sempre crio imagens para o que escuto, vejo o corpo franzino da poetisa se estilhaçando em mil versos. Daria um poema concreto.

– Houdini já disse para ela: escreva minha filha, escreva! Talento não lhe falta. Todo mundo é escritor, até prova em contrário. Eu mesmo já me arrisquei numas páginas. Sou regionalista assumido.

– Fale do seu último conto! – a moça encoraja o velhote, que já nem precisa de estímulo, depois do quarto whisky. 

– Deixe pra lá! Estamos diante de uma sumidade. Quem sou eu para me comparar?

– Modéstia. Cada um possui um estilo.

– É verdade. Regionalismo pra mim é regionalismo, não tem panos mornos. História boa precisa de coronel, padre, delegado, beata, cangaceiro e moça donzela. E se não tiver começo, meio e fim não presta. É pura tapeação.

Olho em volta, desamparado.

A moça empolga-se.

– Como é o título do conto?

– O Bode Cheiroso.

Sem chances de terra à vista, capitulo e peço:

– Garçom, um whisky duplo!

 

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