Sobre livros e traças | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Sobre livros e traças

Hegel afirma que o desejo do homem é o desejo do outro. Levando a afirmação a sério, meu amor pelos livros vem do pai. Foi com ele que aprendi a ler, de uma forma um tanto heterodoxa e cruel, destruindo figuras de uma velha História Sagrada, da minúscula biblioteca de casa. À luz de um candeeiro, no perdido sertão dos Inhamuns, no Ceará, folheava o livro ilustrado com litogravuras, enquanto papai costurava roupas de couro. A cada estampa do martírio de Cristo, eu apontava um algoz e meu pai confirmava: esse é ruim. Dado o veredicto, molhava o dedo com cuspe e esfregava a figura até destruí-la completamente. Métodos modernos de alfabetização através de livros com cheiro, textura e sons nunca serão tão eficientes.

Meu pai lia noites inteiras, ao lado da rede onde eu dormia. Nossa história predileta era a de José do Egito, do Gênesis. Um dia ele pediu que lesse sozinho e, ao final, falou que eu não precisava mais dele para chegar aos livros. A figura de meu pai está tão fortemente ligada a esse objeto de desejo que fantasiei-o com um escrínio de couro, feito por ele mesmo, onde guardava o seu romance predileto: A História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Quem tinha um escrínio de ouro era Alexandre da Macedônia, onde guardava a Ilíada de Homero, nunca se separando dele. Alexandre amava os livros, os filósofos, os poetas, a ponto de salvar a casa de Píndaro, quando ordenou a destruição de Tebas.

Ora amado, ora odiado, o livro traça a trajetória do homem. Graças a ele conhecemos o herói Gilgamesh, da cidade de Uruk, na Suméria. Em escrita cuneiforme, o poema registrado em blocos de argila faz o primeiro relato do dilúvio. Cobiçado na Idade Média pela Igreja Católica, representava o poder do conhecimento, devendo ser oculto, pois o saber é explosivo, único meio de libertar o homem da tirania política e religiosa. São Francisco de Assis o condenou, temia-o como ao Diabo, receava o contágio do conhecimento, uma doença que corrompe o espírito, tornando a mente complexa. Os muçulmanos odeiam as mentiras dos livros – o Corão é a única verdade.

No romance policial de Umberto Eco, O Nome da Rosa, a trama gira em torno de uma biblioteca, a procura de um livro inédito de Aristóteles e a disputa pelo saber. É cheia de trama a forma como alguns livros chegaram até nós. O Panchatranta, coleção de setenta contos, compilada por volta do século VI aC, atribuída a Bidpai, um lendário sábio brâmane, é encontrado por Jean de La Fontaine, na década de 1660, e torna-se uma das fontes de inspiração de suas fábulas. Boccacio descobriu O Asno de Ouro, de Apuleio, romance metafísico do século II, e graças a ele tomamos conhecimento da fábula helênica de “Eros e Psique”. Não menos fabulosa é a versão de que Lao Tsé recolheu-se à floresta, dos 40 aos 80 anos, e um dia atravessou um posto florestal e, sem maiores recomendações, entregou a um guarda os originais do Tao Te King, gesto bem de acordo com o taoísmo que pregava.

Para Borges, o fato central da sua vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia. Penso os livros como uma fragmentária rede de conhecimentos, que tecemos em novos livros. Não podia ser de outro modo, para mim. Durante a adolescência li, na biblioteca de um primo, livros parcialmente comidos pelas traças. Faltavam páginas inteiras, inícios, finais, meios. Nunca soube como terminava Eugênia Grandet de Balzac, nem como principiava As Minas de Prata de José de Alencar. Ficava a meu critério inventar os pedaços que compunham essa falta. O que colocar no lugar da falta? Outra escrita.

Qual o lugar do livro na sociedade contemporânea? Fazemos a pergunta diante do crescente poder da imagem.

Espero que nunca se perca o encanto de ler um livro e escrevê-lo, de forma convencional, juntando palavras em frases. Ou numa escrita fragmentária, como a história do homem, em que é necessário recompor pedaços, num delicado trabalho arqueológico.

A escrita dos livros não é diferente da inscrição do homem na história. Partimos do que já foi feito por outros, antes de nós, preenchendo os buracos vazios deixados pelas traças

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