Acho melhor não (sobre escolhas) | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Acho melhor não (sobre escolhas)

Toda escolha pressupõe um julgamento de valor, vivemos optando entre o que achamos bom ou ruim. Quanta tragédia por causa das escolhas, desde o começo da história. Caim cultivava o solo e Abel era um pastor de ovelhas. Caim vivia preso à terra e Abel vagando pelas pastagens. Caim ofereceu frutos e sementes a Iahweh, Abel ofereceu a gordura dos seus carneiros. Iahweh agradou-se de Abel e sua oferenda, mas não se agradou de Caim.

A preferência é subjetiva. Caim se ofende com a recusa de Deus e assassina o irmão. Iahweh amaldiçoa Caim e o expulsa do solo fértil. O crime aconteceria se Deus não provocasse a animosidade entre os irmãos, com sua escolha arbitrária? Julgamos, escolhemos, somos escolhidos, num permanente jogo.

Uma boa risada é a melhor resposta ao que consideramos injusto, um antídoto contra o rancor e o desejo de vingança. Mas não somos santos, desejamos sempre ganhar, ser eleitos os melhores. Os concursos são motivos de guerra, mesmo os mais pueris, como os de beleza. Vocês pensam que é de agora que eles acontecem? Numa festa nupcial em que compareceram os deuses olímpicos, a Discórdia atirou uma maçã de ouro com a seguinte inscrição: à mais bela.

Três deusas se engalfinharam pela posse da faixa: Hera, Atena e Afrodite. Como não entravam em acordo, resolveram submeter-se ao julgamento de Páris, o mais belo dos mortais. Para corrompê-lo, Hera ofereceu-lhe fortuna, Atena prometeu sucesso nas guerras e Afrodite acenou-lhe com o amor de uma linda mulher. Páris tinha sido abandonado pelo pai, o rei de Tróia, e criado por pastores, pois um oráculo anunciara que ele seria a causa da destruição da cidade e seu povo. Páris concedeu a maçã a Afrodite, e com sua ajuda raptou Helena, esposa de Menelau, causando a guerra entre gregos e troianos.

Nunca gostei de submeter-me a concursos e avaliações. Passados cinquenta anos, ainda sonho com as provas do vestibular, experimento a mesma angústia que senti na época. Sou avaliado a cada novo livro, a cada peça que enceno, ou até num simples artigo como este. Os que afirmam não ligarem para a crítica, estão mentindo. Desejamos que as pessoas nos leiam e, de preferência, gostem do que escrevemos. Mesmo que os nossos frutos não sejam os mais saborosos, sofremos com a recusa, igual a Caim. E se alguém nos menospreza por um Abel, atiramos pedras e fazemos vítimas.

Não me convidem para ser membro de comissão julgadora. Prometi que nunca mais atribuiria notas a livros, contos, poesias, ou grupos carnavalescos. Bastam as escolhas que sou obrigado a fazer a cada instante: melhor tomar à direita, melhor apertar o botão amarelo, melhor comprar a calça jeans. Não quero ser o juiz de ninguém, nem atirar a primeira pedra, nem fazer a escolha certa. Mesmo que os apócrifos afirmem que a porta é a que escolhe e não o homem, vivemos fazendo escolhas.

– Que livro marcou sua vida?

Quantas vezes respondi essa pergunta?

Folhas de Relva, de Walt Whitman.

– É verdade? Nunca imaginei. Pensei em Guimarães Rosa  ou Machado.

– Não, o livro que mais me marcou foi esse.

– Jura?

– Juro.

Terá sido, mesmo? E se não foi? Li tantos livros.

Por que me obrigam às escolhas?

Pedem a lista dos livros que mais gostei em 2020. Reviro a memória, encontro traduções, lançamentos nacionais, livros de pequenas editoras, edições do autor. Tento ser honesto, não cometer injustiças, nem excessos, nem faltas. Publicam a lista.  Surgem queixas: você me esqueceu, não fui lembrado.

Se fosse possível viver sem a obrigação das escolhas, sem as dúvidas que nos corroem. Se a maçã de ouro fosse depositada em nossa mão com endereço certo – ao melhor, ao mais belo –, sem discórdia, nem dúvida. Se todas as vezes que nos exigem escolher, pudéssemos adiar para mais tarde, e responder como o Bartleby, de Melville – acho melhor não –, deixando sempre para depois, de preferência para nunca. 

Mas nem quando dormimos sossegamos, também nos sonhos precisamos escolher por esta ou aquela porta. 

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