Rainha sem coroa | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Rainha sem coroa

– Tereza, não vá!

– Vou!

E foi.

Difícil contar a história. As palavras mudam o significado todos os dias, se transformam. Perdem a validade como os remédios nas prateleiras das farmácias ou os iogurtes nos supermercados. O que era compreensível há cinquenta anos virou grego.

Maracatu.

Quem, fora do Recife, conhece? Abrem o dicionário de folclore e lêem: grupo carnavalesco pernambucano, com pequena orquestra de percussão. E muito mais ciência jogada fora por Câmara Cascudo. A meninada escuta manguebeat, agita os braços e fica de bobeira, alheia à história. As nações negras também perderam a ligação com o sagrado, viraram carnaval.   

– Tereza era rainha do maracatu Indiano e não fora convidada para o aniversário da rainha D. Emília, do maracatu Elefante. Em vez de sentir-se ofendida, ela decidiu ir à festa de penetra.

Tente explicar a um diretor da Televisão BBC o que significa maracatu. Ele precisa rodar um documentário para uma série de dez filmes sobre a música de alguns povos, gente que vive nos extremos do planeta. Você joga a informação, aguarda resposta, mas os olhos azuis só expressam ignorância. O inglês não entende nada do assunto. Acaba de chegar da Lapônia, sente-se exausto pelo esforço de desvendar aquela gente miúda, vestida em roupas coloridas numa cerimônia de casamento.

Arremesso a bola, outra vez.

– Não vamos atrás da origem da palavra maracatu, muitos se perderam nessa viagem. Basta saber que os escravos negros se rebelavam nos engenhos de Pernambuco, fugiam para os Quilombos, caía a produção de açúcar. E se inventassem um jeito de acabar com as fugas? Que jeito? Eleger um rei e uma rainha de negros, uma corte de duques, condes e barões, parecida com a dos europeus. Os brancos manipuladores coroariam os negros na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, frequentada apenas pelos escravos.

Acho que me saí bem, o inglês entende de realeza e deseja ouvir o discurso de um intelectual falando da cultura negra como um jogo inventado pelos colonizadores. Ataco:   

– As rainhas de maracatu possuem tanta majestade quanto a Elizabeth de vocês.

Por alguns minutos, sinto voarem do bolso as libras do meu pagamento. Toda equipe estremece.

– Seria um reinado a cada dois anos, de pura fantasia. Os donos de engenho desejavam segurar os escravos no trabalho, aplicar a velha fórmula romana do pão e circo, garapa de cana e brincadeira. A corte desfilava pelas ruas, as coroas de latão brilhando nas cabeças, rei e rainha debaixo de um pálio, tambores fazendo festa.   

Princesa Dona Emília

para onde vai?

– Vou passear.

– Tereza, não vá!

Emendo a loa na história, nunca soube o que significa saramoná,  preciso apenas escrever um roteiro básico, criar tensões nos cinquenta minutos de filme e garantir minhas libras. Ignoro quantos anos durou a artimanha dos brancos e se diminuíram as fugas dos escravos com a invenção dos Reis de Congo. Mas sei que os maracatus se proclamaram nações: Nação Porto Rico, Nação Cambinda Estrela, Nação Elefante, Nação Cruzeiro do Forte. Proliferaram as reminiscências tribais e religiosas em meio à brincadeira.

Repito ao gringo a história a partir da qual poderemos criar nosso roteiro de filmagem: Dona Emília do maracatu Elefante, a última rainha coroada dentro de igreja no Recife, fazia aniversário. Convidou todo mundo, menos Tereza, rainha do Indiano. As duas rivalizavam em charme e prestígio. Mas o bispo proibira que Tereza fosse coroada como nos velhos tempos, no altar barroco de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

– Consegue compreender? – pergunto ao inglês.

Ele acha que o melhor para o filme é vencer a resistência da Igreja Católica e fazer a coroação nos moldes antigos. Apela aos poderes da BBC, ao Vaticano, ao arcebispado do Recife.

– Não existem mais escravos. Os tempos mudaram. A Igreja já não vive atrelada ao poder do Estado. Pra que tapear? Deixem os negrinhos se coroarem nos terreiros deles. Dentro da Casa de Deus não permito essas palhaçadas. Nem autorizo os padres a se fazerem de palhaços – esbravejou o rabugento arcebispo.

Com esse anátema semelhante a uma excomunhão, os padres se negavam a repetir o que sempre fizeram nos tempos em que namoravam os poderosos da cana de açúcar. Apenas Emília poderia coroar a sucessora, outorgando a majestade de rainha para rainha. Tereza sabia disso, e se mordia de raiva. Maracatu se transformara em brincadeira de carnaval, mas crescia nos terreiros dos orixás, onde se cultuavam as religiões africanas. Rainha e rei eram quase sempre mãe e pai de santo. 

– Tereza, não vá!

– Vou!

Além de rainha de carnaval, Tereza era ialorixá, filha de Ogum. Consultou Ifá e Ele mandou que fosse. Da Bomba do Hemetério avistou a casa de Emília. No começo, as duas brincavam no mesmo maracatu. Tereza desfilou como dama do paço e depois baronesa. Quis ser dona da própria nação. Buscou mãe de santo, se fez nos orixás, guardou quarto e por fim abriu seu terreiro. Quando morreu a rainha do Indiano, foi chamada para ocupar o posto. Sabia mexer os quadris e os ombros numa dança contida, de poucos movimentos, com reservas de gente nobre. Também dava ordens, gostava de paparicado e adulação. Em pouco tempo, sentia-se rainha, pois realeza de negro também está no sangue.

Só temia inveja. A cada saída do Indiano ofertava presentes a Ogum: carne verde, a cabeça de um boi, um galo e uma galinha-d’angola. Pedia proteção. Bastava um mau olhado pra derrubá-la na cama. Nem parecia a filha de um orixá do ferro e da guerra, das lutas e embates. Era vulnerável como a aroeira de culto que plantara na frente de casa, que murchava as folhas aos menores motivos.

Tereza chamou as mães pequenas pra se aconselhar. Emília estava velha, podia morrer qualquer dia. Se Tereza não fosse coroada por ela, ficaria sem título, rainha de embuste, farsante a quem os padres negavam uma bênção e o rito apressado de enfiar uma coroa no meio da cabeça.

Arrumada debaixo do pálio vermelho de franjas douradas, segurava o cetro e pensava no reboliço lá embaixo, na casa de Emília. O rei de sua corte indiana recusara-se a acompanhá-la. Tinha medo de briga e não faltava ao trabalho na oficina mecânica.

Desceu o morro sem marido, solteira como Elizabeth Primeira, a amante de um pirata.

– Tereza, não vá!

Os ingleses da BBC marcaram visita. Filmaram Tereza cercada pela corte, no salão nobre onde ela dava festas aos santos, nos dias de culto. Abriu precedente aos cinegrafistas, pois filmagem era coisa de carnaval e o seu terreiro, lugar sagrado.

O batuque explodia os tímpanos britânicos. Num quarto escuro, o altar-peji que as câmeras não podiam bisbilhotar guardava os símbolos sagrados de Ogum: foice, cavador, pá, enxada, lança, malho, espada, punhal, arco, flecha, facão, bacia esmaltada, quartinha vermelha e seis pratos.

Os tambores calaram os ingleses assim que eles entraram na sala.

– Tereza, não vá!

O calor não dá trégua, o suor escorre dos corpos. Abrindo o cortejo, um brincante sustenta o estandarte acima das cabeças. Nos passos dele segue a corte enfileirada. Protegida do sol forte sob um pálio vermelho, a rainha segura o cetro com firmeza; por último, os batuqueiros e seus instrumentos musicais: zabumbas, caixa-de-guerra, tarol e gonguê. 

Descem a ladeira sem perder o passo de dança e chegam em frente à casa da nação Elefante. Tereza ordena que puxem a toada do Indiano e envia um emissário à Rainha Emília. Pede para ser recebida. Silêncio e espera. O emissário retorna acompanhado de um pajem, com o estandarte do Elefante. As duas bandeiras se cruzam no alto, em sinal de cumprimento. Tereza pisa o terreno da rainha rival, temerosa de sua ousadia. As nações se misturam e Emília convida Tereza a sentar à sua direita, sorrindo para ela. Talvez lembre o tempo em que dançavam juntas, defendendo as cores do mesmo maracatu. Emília presume o que trouxe Tereza à sua festa e o que ela deseja pedir. Mesmo assim pergunta:

– Você sabe onde se coroa uma rainha?

– Na igreja do Rosário dos Pretos.

– Não é mais. Fomos corridos de lá.

– E onde é agora?

– Aqui mesmo, neste salão onde reino. Basta que você queira.

– Eu quero. 

Emília sorri da pressa da mulher rival.

– Venha me visitar uma tarde dessas. Vou coroar você.

O resto da conversa não se escutou. Os batuqueiros decidiram tocar juntos, abafando as vozes de Emília e Tereza, que nunca mais se encontraram. A majestade do Elefante morreu poucos dias depois do memorável encontro. Nos filmes e retratos em preto e branco ainda se guardam lembranças de Emília, rainha coroada dos maracatus pernambucanos. A última.

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