(Des)Conversas de Carnaval | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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(Des)Conversas de Carnaval

Sábado à noite

Durante mais de uma hora atravesso caminhando a dispersão do Galo da Madrugada, sigo pela Riachuelo, Hospício, 7 de setembro, Aurora, ponte Duarte Coelho, rua do Sol, Guararapes, Pracinha do Diário, até alcançar o Cais da Alfândega, no Bairro do Recife. Uma experiência aniquiladora. Felizmente sobrevivi. Tenho assunto para muitas crônicas, contos e um romance. O que não me mata me torna mais forte, dizia Nietzsche, ou o que não mata engorda, afirma o vulgo.

Chego atrasado ao show do artista Antonio Carlos ou Toinho, que se tornou Antonio Nóbrega. Avisto Leda Alves, cruzo com Sérgio Campelo do Sagrama, cumprimento amigos e conhecidos. Paulo Figueiredo confessa seu espanto com Nóbrega, a forma física depois dos setenta anos. Corrijo: são sessenta e seis. Quero falar com o amigo, nos vimos bem pouco nos últimos tempos, apesar da grande convivência nas décadas de setenta e oitenta. Fazíamos aula juntos, numa casa de Nóbrega no Poço da Panela, com o mestre Nascimento do Passo – e com o dançarino de gafieira Benedito –, promovíamos apresentações do Mestre Salustiano e seus familiares, sempre em busca de aprendizagem. As aulas de caboclinhos eram tomadas nos próprios brinquedos, nos morros de Casa Amarela e adjacências.

Encaminhei Nóbrega para o Cariri cearense, apresentei-o aos reisados. Vivíamos correndo atrás dos brincantes populares. Tivemos uma experiência luminosa num festival em Alagoas, promovido por Théo Brandão. Ajudei Toinho a conceber e a encenar o espetáculo com o qual estreou em São Paulo, o Maracatu Misterioso. Foram meus primeiros rudimentos de direção. Trouxe do Potengi, no Ceará, as máscaras do reisado de couro, que serviram de inspiração aos figurinos de Romero Andrade Lima para O Reino do Meio Dia, que Nóbrega apresentou no Carlton Festival. A belíssima música de Antonio Madureira seria a última colaboração dos antigos parceiros no Quinteto Armorial.

Atravesso o palco do Arsenal da Marinha em meio ao show de Claudio Almeida, chego aos camarins, bato na porta de Nóbrega, entro. Lá dentro estão a esposa Rosane, a filha Eugênia e o genro. Grande alegria, troca de abraços, sinto um clima circense de desmonte de lona. Rosane ainda não se desfez dos cílios postiços, Nóbrega despiu a camisa.

– Cara, não consegui chegar à tempo, explico. Precisei transpor o inferno até aqui.

– Só me deram quarenta minutos de apresentação. Trazem dezesseis artistas e técnicos, pagam as passagens, hospedam num hotel e só concedem esse tempo. O show dura hora e meia.

O clima é de correria.

– Onde eu posso te ver?

– Amanhã, na Várzea.

Rosane ainda precisa comprar uns cocares para o próximo espetáculo. Lembro uma festa na nossa casa do Espinheiro, em 1980, quando os dois começaram a namorar. As conversas se intercalam com o trabalho de armazenagem dos objetos de cena. Todos correm. Mostro as fotos dos netos, uma intimidade incabível no momento.

Outras conversas ligeiras, truncadas, correria, correria…

– Vocês aparecem lá em casa?

– Impossível, não há tempo. Ainda vamos a Natal.

Mais conversas entrecortadas. Sinto-me alheio à cena, despeço-me. 

Juro que serei senhor do meu tempo. Até morrer. O que não está longe.

Segunda-feira de manhã

Encontro o músico, compositor e cantor Siba, na calçada de um supermercado em Casa Amarela. Para quem não lembra, Siba integrava o Mestre Ambrósio, que fez sucesso anos atrás, e depois seguiu carreira solo.

– Tudo bem Siba?

– Estou lascado, envelhecendo como você.

– O que é isso cara, me chamando de velho?

Siba pintou o bigode de vermelho e a barba de violeta. Pensei que fosse provisório, pro carnaval.

– Tive de aguentar duas horas no salão e ficou essa merda. Agora só larga à medida que o fio crescer. Pelo menos dois meses.

Carrega um saco cheio de rolos de papel higiênico. Tem cinquenta anos, mas quando o conheci, estudante do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco, tinha apenas vinte. Eu frequentava um curso de flauta, coisa em que evoluí pouco. Olhava o rapaz moreno, parecendo um mestre de maracatu rural, se exercitando na rabeca.

– Você está na casa de sua mãe?

– Estou. Fica aqui perto, no Poço da Panela.

– Eu moro naquele prédio ali atrás (aponto o edifício). Apareça para um café. O café de casa é bom.

– Não vou prometer, o tempo está corrido, por conta do carnaval.

– Você tocou no café do Bongar?

– Gosto muito daquele pessoal.

Se agita, olha o braço, mas não usa relógio.

– Cara, desculpa, mas tenho de ir. Preciso passar o som da apresentação de hoje.

Ofereço carona, ele está de carro, a conversa gora, prossigo minha caminhada, renovo o juramento de que serei dono do meu tempo, se possível um vagabundo. Lembro a expressão ócio criador e os versos de Neruda para Garcia Lorca:

… agora, quando ninguém se demora entre os rochedos,

falemos simplesmente como tu és e eu sou:

para que servem os versos se não é para o orvalho?

Qualquer dia, retornando para casa

Ouço na Rádio Universitária um caloroso debate sobre o Bloco da Saudade. Precisaria estar presente e esclarecer alguns pontos. Cronista é também historiador. O bloco lírico foi criado em 1974 pelo compositor, violonista e maestro Antonio Madureira, conhecido como Zoca Madureira, e por Marcelo Varela. Os ensaios aconteciam na casa de Zoca e sua esposa Sevy, no Cordeiro. Quando entrei para o bloco, ele já ensaiava no Clube da Sudene. Não havia flabelo, o abre-alas que segue à frente do cortejo. Prontifiquei-me a criar e bolei um leque, que ficou pesado e era arrastado pelo vento. No ano seguinte imaginei uma máscara e pedi a Maria das Graças Nóbrega, a Galega, irmã de Antonio Nóbrega, e ela executou a peça decorativa que tornou-se símbolo do bloco. Está contada a história como foi de verdade. E quem repeti-la, por favor, não acrescente um ponto.

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