Ismael [Trecho de "Galileia"] | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Ismael [Trecho de “Galileia”]

As pedras queimam as solas dos meus pés. Os tênis de nada servem; melhor seria calçar botas de couro. Talvez eu não tombasse à direita e à esquerda, igual a câmera nas mãos de um cinegrafista inexperiente, deixando vazar a luz para a película, cegando os espectadores de luminosidade. Por que retornei à Galileia? Repito a pergunta a cada passo. Por que retornei à Galileia? Por que retornamos aos lugares que nos expulsam como aborto indesejado? O que vim fazer aqui? Apenas cometer o crime que a família premeditou há anos. Ser o Caim eleito, o que desfere a pedrada contra o irmão. Matei por inveja, um passo, por inveja, dois passos, por inveja, três passos. Caio novamente. Nós três fomos embora: primeiro Davi, segundo eu, terceiro Ismael. Ninguém acertou nosso encontro na Galileia, mas ele parece traçado. No jogo do baralho traçam as cartas, cortam, dá o naipe de espadas. O valete cai morto pelo rei, na primeira rodada. Embaralham as cartas novamente. Meu juízo se embaralha. Preciso compreender a estratégia do jogo, senão enlouqueço. Embaralham as cartas, cortam no naipe de ouros. O valete de cabelos encaracolados lembra Davi sangrando debaixo do sol. As pernas finas correndo; os pés descalços deixando marcas vermelhas nas pedras. Para onde corre meu primo vitimado? Para onde eu corro assassino? Os homens da família assistem à corrida, um automóvel derrapando em curvas, dá três cambalhotas, cai. Derrapo. As lajes são escorregadias mesmo quando não chove. Caio. A família em seus observatórios de portas e janelas, olhando o primo correr despido, os genitais expostos sob a camisa branca que mal esconde. Esconder o quê? A camisa suja de sangue atrás. Minha camisa suja de sangue na frente, na pala, no colarinho, nas mangas, nos punhos. 

Mas não é apenas aqui na Galileia que esses crimes acontecem. Não é apenas na Galileia, não é apenas na Galileia, não é apenas na Galileia. Aonde as minhas pernas me levarem, tropeçando sobre lajedos, afundando em areia, em qualquer metrópole ou vila, no deserto mais longe, eu sei que ocorrem massacres e carnificinas. Lembro de novo o filósofo romeno. Porra! A cabeça não para! Não é apenas aqui, na Galileia, nesse limitado espaço de terra que as pessoas se odeiam. Em qualquer lugar do planeta as pessoas se odeiam, mas nem sempre estão à altura de seu ódio. Nós, da família, nos elevamos acima da mediocridade que nos cerca, e nosso ódio aflora em busca da tragédia. Por isso matei Ismael. Está mais do que claro, e mais do que justificado. Matei-o em busca de um instante de poesia, para que ele não se perdesse em movimentos repetidos e desconexos. Salvei-o de tornar-se feio.  Eu sei reproduzir a beleza sem me perder em gestos falsos e Davi conhece as entranhas da música. Ismael alcançou um instante de grandeza que nunca mais se repetirá.  É isso. Tudo é tão lógico, mas não consigo parar de chorar. Ismael, eu nunca vou esquecer a beleza do seu rosto espantado, olhando para mim. Sua vida turbulenta justificou-se pela majestade do sacrifício, pela imobilidade com que aguardou o martírio, debaixo da árvore. Você seria incapaz de repetir o instante absoluto, por mais pedras que eu arremessasse. Gostaria de ler seus pensamentos, mas não posso acessar a memória de um morto. Ismael, melhor que eu o tenha matado agora, antes de entrarmos numa ordem de ferocidade que se tornou monótona. Não sei o que virá em seguida à sua morte, mas reconheça que tive coragem de tomar a dianteira. Eu, o mais imbecil de todos nós.

Me perdoe, primo querido; estou chorando. Depois de viver em outras sociedades, de reconhecer o esforço que elas fizeram para se diferenciar do que nós somos, voltamos à barbárie e praticamos os mesmos atos de sempre. Por quê? Me responda! Estou desorientado, e só consigo me guiar pelo raciocínio. Meu coração trancou-se, não sinto nada. Há pouco você afirmou que sou duro. O que esperava que brotasse desse chão? Foi para matá-lo que você me carregou nos braços, quando furei o pé? Ismael, acabe com a brincadeira de se fingir de morto! Levante, vamos rir disso tudo, do mesmo jeito que choramos na noite passada. Vou retornar ao ponto em que o deixei caído. O ferimento em sua testa é uma pequena marca que nem se percebe. Fui eu que o feri, ou foi você quem me feriu? 

Não tenho coragem de confessar o que você adivinhou. Nem a você morto eu falo. Não me peça. Que se dane, Ismael! Você recebeu o que sempre pediu, o que merecia. Reúno os tios e digo a eles que você está morto. Que caiu de uma árvore e fraturou o crânio. Se quiser me tornar respeitado, digo a verdade. Matei e pronto. Você insultou minha mãe e ainda confessou a nojeira com Davi. O verdadeiro culpado pelo sangue de seu irmão Davi finalmente dormirá tranquilo. Entraremos em outra ordem por um tempo, até que algum de nós enlouqueça novamente. Mas você já está morto, o avô também estará morto, e nada dessa desordem fará parte de suas preocupações. Agradeça eu tê-lo poupado de novos confrontos, de uma vida sob ameaça. É horrível viver com a faca encostada no peito. Beije-me, Ismael, você não recusa ninguém. Beije-me do jeito que beijaram seu irmão Davi, antes que o sangrassem como um cordeiro de Páscoa. Um cordeirinho tenro. A nossa família de canibais em volta da mesa de banquete, sofregamente roendo ossinhos, mastigando cartilagens, chupando tutano de tíbias, e fíbulas, e fêmures, e cúbitos. 

Se não parar de pensar, enlouqueço de vez. Preciso rever Davi, exaltar sua santidade, acender uma vela para ele, como fazem todos da família. Davi, o príncipe, o que entrou em Jerusalém embriagado, dançando despido à frente de um cortejo de homens. Eu o vinguei, juro, eu o vinguei. Não foi pelo insulto ao sagrado nome de minha mãe que eu matei Ismael. Não foi. Sou lógico demais para me deixar levar por impulsos. Matei pela mesma razão por que acontecem terremotos. De vez em quando é necessária uma sacudidela, que nossos instintos aproveitam. Depois, tudo volta a ser como antes. Tudo igual. A paisagem conhecida, a casa do avô ao centro, as casas dos tios Natan, Josafá e Salomão em volta, e a sombria Casa-Grande do Umbuzeiro, minha provável sepultura.

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