Eles vão matar nosso povo novamente? | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Eles vão matar nosso povo novamente?

Cândido Pinto morreu.

Lembrei a Milonga de Manoel Flores, do poeta Jorge Luís Borges: morrer é um costume que sabe ter toda gente.

Poucos conhecem Cândido Pinto, nos dias de hoje. Mas na década de 1960, quando agitava o meio estudantil com o seu discurso libertário, a polícia se informava de todos os seus passos. Uma fotografia da época, a última em que aparece de pé, revela um rapaz alto e magro, de ar tranquilo e sonhador. Em 69, ao receber a bala que o mataria trinta e três anos depois, já vivia na clandestinidade. O curso de engenharia elétrica, começado quatro anos antes, foi interrompido por repetidas prisões e viagens a serviço da União dos Estudantes de Pernambuco. Eleito seu presidente, lutava para restaurar a União Nacional dos Estudantes, UNE, fechada pelos militares. Ao filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, optou pela luta armada, deixando de morar na casa dos pais e de frequentar a universidade.

Preso repetidas vezes e condenado pela justiça, apelou, fugiu e se escondeu, como fizeram muitos estudantes de biografia igual, na ditadura militar. No dia em que tudo começou, ele aguardava um ônibus na Ponte da Torre, no Recife. Dirigia-se a uma reunião do partido. Como em outras histórias dos tempos da repressão, foi abordado por homens encapuzados e armados, que ocupavam uma Rural Jeep. Reagiu, temendo o destino que o aguardava. A primeira bala partiu os seus óculos, ferindo-o no rosto. A segunda penetrou pelo ombro esquerdo, atravessando o pulmão e lesando a coluna vertebral. Cândido tombou na ponte e nunca mais experimentou o movimento das pernas, nem sentiu ter um corpo, abaixo do peito.

Mesmo com a forte censura, a imprensa do Recife noticiou o atentado, os estudantes entraram em greve, houve protestos e denúncias. Para Cândido, que sonhava sacrificar a vida pela causa revolucionária, a perda dos movimentos era um preço menor, mesmo assim muito elevado. Começou nova luta para manter-se ativo numa cadeira de rodas, atuar politicamente, voltar a estudar, produzir e amar.

Se “morrer é haver nascido”, Cândido não pôde esquecer um único dia, dos que viveu pela frente, dessa morte que gostava de desafiar, nos tempos de luta armada. Ela instalou-se no seu corpo, paralisante e infecciosa, lembrando o encapuzado traiçoeiro que o imobilizou.

Nunca perguntei a Cândido Pinto o que ele pensava dos impulsos de jovem estudante. Sempre que conversamos, preferimos discorrer sobre teatro, literatura, cinema e música, que me parecem temas abstratos. É possível que ele seja o herói de um tempo em que se acreditou mudar o Brasil pela revolução social, não faltando quem para isso sacrificasse a vida e a família. Um tempo bem parecido com o que vivemos agora, cheio de angústia, temores pelo futuro de nossa democracia, falência da Justiça, do Legislativo e do Executivo. As mesmas ameaças das forças armadas, a indiferença dos poderosos pelos pobres. Tempo de desigualdade social, corrupção e ganância de quem já possui em excesso; uma imprensa contaminada por interesses, manipulando ao seu bel prazer a informação.

O meu filho caçula, nascido num Brasil depois, estranhou o clima de dor e celebração do enterro de Cândido. Quando um dos seus companheiros estendeu a bandeira do partido sobre o caixão do morto, tentando estabelecer um elo com a bandeira pela qual ele se martirizou, o meu filho intuiu que também se morrem por ideais.

Mesmo sem nunca ter feito a pergunta, mesmo sabendo que Cândido desafiou a morte de perto, suponho que ele amava a vida. E que não estava feliz diante da morte finalmente consumada, após trinta e três anos de luta contra o espectro de uma bala.

Novamente evoquei a Milonga de Manoel Flores:

“E apesar disso me dói
Despedir-me da vida
Essa coisa tão de sempre
Tão doce e tão conhecida.”

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