Peixes, cebolas e políticos | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Peixes, cebolas e políticos

A história é bem conhecida. Um pescador pobre, sua esposa e os filhos passavam fome havia três dias, pois ele nada pescava. Desanimado, o homem jogou sua rede ao mar e encontrou uma solha no fundo da rede. O peixe debatia-se em vão, sabendo o destino que o esperava. Suplicou ao homem que o atirasse de volta à água e, em troca, lhe daria o que pedisse. Habituado à pobreza, o homem pediu uma fazenda modesta, um curral de vacas, chiqueiros com porcos e galinhas, roupas domingueiras. Ao voltar para casa, mal acreditou na fortuna. Tudo estava ali, muito acima do que imaginara. Feliz, o pescador contou sua aventura à mulher. Ao invés de mostrar-se satisfeita, ela ficou amuada. Chamou-o idiota, homem sem ambições, incapaz de enxergar mais longe.

Pouco tempo depois, ordenou que o marido voltasse ao mar, invocasse a solha e exigisse um baronato para ela. A história é longa e o final previsível. A ambição da mulher não tinha medida, a ansiedade por novos poderes subia num permanente crescendo. Depois do baronato ela desejou um condado, um ducado, um reinado, um império, um papado e, por último, ser Deus. A cada retorno, o pescador encontrava o mar mais agitado. Na última viagem, ondas escuras e medonhas ameaçavam tragá-lo. Temeroso, comunicou à solha que a esposa desejava ser Deus. O peixe olhou-o sem a menor compaixão. Retornasse para casa, dessa vez a mulher ficaria satisfeita. Já de longe, ele avistou a antiga choça imunda, os filhos maltrapilhos, a esposa descabelada. Tudo voltara a ser como antes.

Os leitores pensam que à falta de assunto eu resolvi contar histórias da Carochinha. Se fosse apenas isso, já seria bastante. Os contos da tradição oral encerram ensinamentos acumulados ao longo da trajetória do homem sobre a Terra. Talvez eles precisem ser novamente contados, lidos como exemplo para uma vida mais justa e coerente. Não parece a vocês que a mulher do pescador é a representação dos políticos, que só pensam em eleger-se e chegar a novos cargos? Mal se elegem deputados estaduais, já estão brigando para chegar a federais. Depois a governadores, senadores, ministros ou presidente da república. Um frenético jogo de cadeiras, girando, sentando, girando, sentando, girando, sentando… Os discursos de campanha são rapidamente esquecidos, a ética relegada, a honestidade proscrita da memória. Os eleitores dão os votos que pedem, como a solha atendia aos pedidos sem limite da mulher ambiciosa.

Posso estar sendo cruel, na medida em que generalizo. O conto de tradição oral relata exemplos particulares, estendendo a sua função educativa à coletividade. Cada um bote na cabeça a carapuça que melhor lhe servir. Por uma ovelha não devemos condenar o redil. As ovelhas são exceções e o rebanho a regra. Quando Iahweh resolveu destruir a cidade de Sodoma, Abraão protestou: “Destruirás o justo com o pecador? Talvez haja cinquenta justos na cidade. Destruirás e não perdoarás a cidade pelos cinquenta justos que estão em seu seio?” Ao que Iahweh respondeu: “Se eu encontrar em Sodoma cinquenta justos na cidade, perdoarei toda a cidade por causa deles.” Como não foram encontrados, a cidade ardeu em chamas.

No Brasil teríamos mais sorte? Talvez devêssemos aplicar a justiça e a benevolência do conto da cebola. Outra história? Sim, outra história da tradição, que bem faria se fosse lida na Câmara, em Brasília.

Um pecador ardia no fogo do inferno e suplicava clemência ao Deus Todo Poderoso. Seus clamores foram escutados lá em cima no céu, e um anjo enviado para ajudá-lo. – Em sua vida terrena, você praticou pelo menos um ato de caridade, que possa aboná-lo? – perguntou o Anjo compadecido. A alma danada procurou lá no fundo de sua vida egoísta e mesquinha um gesto, por mais insignificante, para salvá-lo das chamas. E lembrou que havia muitos anos, atirara uma cebola podre para um mendigo. O Anjo, feliz em poder ajudar o desgraçado, falou que seria aquela mesma cebola que o salvaria. Estendeu até o céu uma folha de cebola e pediu que a Alma se pendurasse nela e subisse sem medo. Aquele que um dia fora um homem, agarrou-se com sofreguidão ao fiapo verde e começou a subir. Bem adiante, olhou para baixo e reparou que outras almas condenadas também se penduravam na cebola, tentado escapar a destino igual ao dele. Temendo que a folha se partisse com o excesso de peso, o danado chutava os que vinham abaixo dele, com a intenção de derrubá-los. Tantos movimentos ele fez que a cebola partiu-se, precipitando-o novamente nas profundezas do inferno.

Rudyard Kipling escreveu que ao escritor é dado inventar a fábula, mas não a moral da fábula. Não sou apreciador de fábulas moralistas. Mas confesso que gostaria de ver uma folha de cebola estendida de Brasília até o céu. E dar gargalhadas vendo as quedas monumentais.

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