Pequenos relatos de hospital | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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por Janio Santos

Pequenos relatos de hospital

DANIEL
Daniel perdeu a pele do membro inferior direito, da raiz da coxa ao pé. Foi como se descalçasse uma luva. Os músculos sangravam durante os curativos, os nervos expostos doíam. Escutavam-se os gritos de longe. Nem a morfina controlava as dores. O caminhão distribuidor de refrigerantes em que ele trabalhava arrastou-o por um longo trecho de asfalto. O motorista supôs que Daniel tivesse subido na carroceria. Quando percebeu que ele ficara pendurado, o pior já acontecera.

Mais grave do que a infecção e as dores era a anemia. Coisa fácil de resolver dentro de um hospital, se Daniel não fosse membro das Testemunhas de Jeová, uma seita que proíbe o uso de qualquer derivado de sangue. Com o nível baixo de hemoglobina, Daniel viu-se condenado a morrer. Os pais proibiram as transfusões e assinaram um termo de responsabilidade por tudo o que viesse a acontecer ao filho.

Numa tarde em que não havia acompanhantes no quarto, o médico manteve a seguinte conversa:

– Daniel, você é jovem, bonito e tem um futuro pela frente. Alguma vez já pensou em se casar?
– Já.
– E em ter filhos?
– Também.
– Coisa boa, falou o médico e deixou o quarto em que o paciente fora isolado.

No dia seguinte, voltou à carga.

– Sua religião proíbe o sexo fora do casamento. É isso mesmo?
– É sim.
– Mas, com toda essa força e saúde eu aposto que você já desejou ficar com a namorada. Fale a verdade, não minta pra mim.

A conversa acontecia durante os curativos e as respostas eram dadas entre gritos e caretas.

– Desejei, ai, ai…

O médico conhecia o caminho que conduz ao sítio onde se guarda a vontade de viver, mais forte do que o desejo pela morte.

– Daniel, você pode amar sua esposa e ter muitos filhos.
– É sério doutor?
– Depende apenas de você.
– E o que eu faço?
– Aceite o sangue.
– Com essa condição, não vou ter o primeiro filho.

Exausto pela dor, se entrega ao desânimo.

– Não posso, meus pais não aceitam. Preferem me ver morto.
– Eu sei, eu sei…

Habituado a fazer incisões com o bisturi, o médico mexe sem receio na ferida.

– E você aceita a vontade deles?

Daniel fecha os olhos e as lágrimas escorrem pelos lados.

– Sua noiva conversou comigo. Você tem bom gosto. Que garota!

Não há resposta à provocação, apenas um tremor no corpo, o que nada significa porque são habituais. Mas, o médico percebe a entrega de quem se deixa vencer pelo cansaço.

– Tem um jeito de tomar o sangue sem meus pais saberem?
– Pra tudo tem jeito, responde sorridente e emocionado.

Tornaram-se rotineiras as idas de Daniel à UTI, onde só eram permitidas visitas de familiares durante uma hora. Explicou-se à família que se tratava de procedimentos especiais, num aparelho da unidade de terapia intensiva. Se os pais suspeitavam de alguma coisa, nunca reclamaram. A felicidade em ver o filho melhorando, depois de cirurgias plásticas e cuidados intensivos, impedia de se queixarem. E sempre havia Jeová, a quem eles podiam atribuir o consolo e o milagre da cura.

NATÁLIA
Natália pilotava a moto quando o acidente aconteceu. A companheira viajava na garupa e sofreu poucos ferimentos. No mesmo dia, após exames rotineiros, voltou para casa. Teve sorte disseram. Natália teve azar. A perna direita foi completamente esmagada. Gorda, mesmo depois de uma cirurgia para redução do estômago, ela mal conseguia sentar-se. Durante os quatro primeiros meses de internamento no serviço de trauma, o salão onde Natália trabalhava como cabeleireira fechou. O casamento se desfizera há algum tempo e a pensão do marido tornou-se irrisória para tantas despesas. As duas filhas foram morar com a mãe. A companheira, que assumira o lugar do marido, viajou a São Paulo e nunca deu notícias. Desesperada, Natália procurou um psiquiatra que a medicou com antidepressivos e ansiolíticos. No ambulatório onde era acompanhada, a infecção não dava sinais de melhora e o destino da perna se revelou sombrio até nas cartas. Natália tinha o costume de jogar o Tarô. No nono mês, tempo de uma gestação a termo, Natália reinternou-se. As fotos de sua tragédia pessoal ganharam a internet, pessoas da cidadezinha onde residia se mobilizaram para socorrê-la, mas seu destino estava nas mãos de um ortopedista, o mesmo que a havia operado na primeira vez e deveria tomar uma nova conduta. Surgiu um companheiro na vida de Natália, rapaz jovem e sensível, que se dispôs a largar tudo e ficar ao seu lado. Ao tomar conhecimento do drama da paciente, o chefe do serviço convocou o especialista. No dia certo e na horta certa, ele entrou na enfermaria e olhou a paciente no rosto. Alto, forte, corado, suava com desconforto, vendo a perna de Natália exposta, sem curativos.

– Doutor Tiago, quanto prazer em revê-lo! Desde a minha primeira cirurgia, há nove meses, não voltamos a nos encontrar.

Além de muito bonita, Natália falava com desenvoltura, se destacando em meio à população humilde de enfermos.

Assombrado com a recepção fora de costume, o especialista não se deixou intimidar.

– É verdade, é verdade. Mas tenho notícias suas pelos médicos residentes que lhe acompanham. Eles fotografam sua perna e me enviam por whattsapp.

Natália enche os olhos de lágrimas.

– O Senhor não quer me dar um abraço? Eu gostaria de receber.

O abraço é dado com sinceridade e carinho.

– Doutor Tiago, há meses essa é a minha casa. Pena, não tenho cadeira para lhe oferecer. Divido este espaço com duas pacientes e três acompanhantes.

Depois, com doloroso sarcasmo, que choca a todos pela coragem, ela apresenta a casa imaginária.

– Conheça onde eu moro. Aqui é a sala, com sofás e televisão. Ali, o quarto e minha cama king. Mais adiante, o banheiro, a cozinha e o quintal. Tudo humilde, decente e aconchegante. O cômodo da frente eu transformei no salão de cabeleireira. Avalie direitinho, perdi tudo isso em nove meses, quando me transformei em ninguém.

O médico e a equipe que o acompanha não sabem como reagir à ousadia.

– Vou operá-la novamente, colocar um novo fixador e recuperar sua perna.

Natália reage com firmeza.

– Não quero cirurgia. Cansei de arrastar esses ossos e músculos podres. Ampute minha perna.

O médico empalidece, tenta convencê-la do contrário.

– Não é assim como você pensa. Precisamos lutar até o fim, recuperar seu membro.
– Cansei de lutar. Quero viver, trabalhar, amar. Com isso que o senhor está vendo, não é possível. Vamos doutor, me ampute.

Acuado, o especialista pede um tempo para decidir. Uma semana depois Natália foi operada. Depois que o coto cicatrizou, na consulta de ambulatório, ela falava risonha sobre técnicas de fazer amor com uma única perna. Essa dificuldade já vencera. Difícil era conseguir que o Estado pagasse a prótese. Com ela voltaria a caminhar.

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