As ondas reacionárias  | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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As ondas reacionárias 

Quando me perguntam se eu sou um escritor regionalista, percebo o subtexto oculto pela questão literária. Reconheço assombrado que o modelo colonialista e escravocrata que nos formou como povo e nação nunca se desfez, permanece na desigualdade social, na concentração de riqueza em poucas famílias, na economia neoliberal, no racismo, na fome, no extermínio de pobres e negros, de índios e trabalhadores do campo. O questionamento deixa de ser acadêmico e se torna geográfico, traz embutido o preconceito com as regiões Norte e Nordeste, economicamente menos desenvolvidas. Sou dramaturgo, talvez por isso eu reviva o massacre de Canudos, as bombas arremessadas de aviões da FAB contra os miseráveis do Caldeirão. Escuto as histórias de minha avó materna, cuja propriedade ficava a apenas seis quilômetros do sítio de agricultores liderados pelo beato José Lourenço, narrando o bombardeio. Lembro a raiva que sentia ao avistar o brigadeiro José de Macedo Sampaio, um dos pilotos, celebrado como herói pelos habitantes do Crato, cidade minha e dele.

Nossos heróis da história! Duarte Coelho, capitão-donatário que os meninos de Olinda narram em epopeia, num matraquear sem fôlego e sem consciência. Em meio aos feitos e glórias do mito, nenhum refere o massacre dos índios Caetés de Igarassu, dizimados pelos canhões portugueses, ancorados no braço de mar que ladeava o morro com o aldeamento. No lugar, mandaram erguer a primeira igreja do Brasil, aos Santos Cosme e Damião, pela vitória alcançada. Heróis bandeirantes! Emprestaram nomes às avenidas, ruas, viadutos, rodovias e monumentos de São Paulo. Modelo de colonizadores eficazes, que, segundo Euclides da Cunha, as sub-raças do Nordeste brasileiro não foram capazes de repetir com igual eficiência na escravização de índios, no sequestro e estupro de mulheres indígenas, na captura de escravos negros fugitivos, na exploração de minas. Heróis na expansão de territórios, na grilagem de terras tomadas aos nativos. Heróis cantados pelos nossos poetas, por Olavo Bilac no poema O caçador de esmeraldas, que me obrigaram a memorizar e dizer numa festa do colégio, não conseguindo até hoje esquecer as estrofes.

Cito o escritor e poeta latino Salústio: essas coisas não aconteceram nunca, mas sempre existiram. Agora existem mais que nunca. Vivemos a agudização do que se fermentou e curtiu-se em séculos. Tramado por famílias poderosas, que detêm o poder. Por intelectuais como Euclides da Cunha, que proclamou em sua cartilha Os sertões a superioridade racial de brancos europeus e a inferioridade de negros e índios. Que acreditava na degeneração resultante dos cruzamentos de raças. Que foi e ainda é aclamado nas academias apesar de sua palavra preconceituosa sobre o homem sertanejo nordestino.

Também me espanta a elite de pensadores, jornalistas, políticos, médicos e escritores eugenistas – melhor chamar a eugenia de racismo disfarçado em ciência – opondo-se aos cruzamentos, às sinapses de nossa formação: Renato Kehl, Miguel Couto, Roquette-Pinto, Gonçalves Viana, Júlio de Mesquita, Oliveira Vianna, Arnaldo Vieira de Carvalho, Monteiro Lobato,  Nina Rodrigues e muitos, muitos outros que defendiam medidas extremas: controle matrimonial e da reprodução humana, miscigenação para branqueamento e regeneração racial, esterilização eugênica, seleção de imigrantes e desvalorização do mestiço brasileiro.

Em Galileia, romance de 2008, em seguida a matar o primo Ismael, repetindo o crime do tio João Domísio, o personagem Adonias lamenta que depois de viver em outras sociedades, de reconhecer o esforço que elas fizeram para melhorar, todos voltam à barbárie e praticam os atos de sempre. Foi assim na Áustria e Alemanha, cujo povo havia alcançado o mais alto grau de civilização nas artes, na filosofia, na psicologia, na educação e capitulou ao delírio de Hitler e seus seguidores, retornando à mais primitiva selvageria.

Algo semelhante acontece no Brasil e no mundo, neste momento da História. Retornam ondas do passado, a supremacia, o preconceito, o controle de nações mais ricas sobre as mais pobres. Essas ondas nunca deixaram de existir, se aparentavam isso é porque agiam silenciosas ou disfarçadas. No Brasil, desde o golpe militar que proclamou a República, as forças armadas vivem a latência de reassumir o poder, sempre a postos para novos golpes, como em 1964. Temos uma democracia sob ameaça e uma República não consolidada. Em risco maior com o crescimento e a politização das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, manipuladas pelos políticos, que se tornaram um poder paralelo semelhante ao da igreja católica, no passado recente.

Mas percebem-se reações positivas no mundo inteiro. No feminismo, na afirmação de grupos LGBTI+, na onda de protestos de negros e brancos contra o racismo e a violência policial, deflagrada pelo assassinato de George Floyd, no reconhecimento de que o capitalismo concentrador de renda já não atende às nossas demandas. Mas é sobretudo na identificação de pessoas, grupos e sociedades comprometidas com a justiça e o bem social de todos que chegamos à certeza tchekhoviana de que o mais importante é transformar a vida; todo o resto é inútil.

 

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1 Comment
  • Amaro Agostinho dos Santos Junior
    Posted at 22:31h, 08 setembro Responder

    Perfeito! Difícil digerir essas verdades, Como perus , engordados para o natal, já fomos obrigados a engoli-las.

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