Onde botar os livros? | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Onde botar os livros?

Ainda vou ler Os Buddenbrooks, de Thomas Mann? Provavelmente não. Já atravessei as centenas de páginas de A Montanha Mágica, romance considerado por Italo Calvino como a introdução mais completa à cultura do século XX. De quebra, li as novelas Morte em Veneza, O Eleito e Tônio Kröger. Chega de Mann. Nem pelo Doutor Fausto ou José e Seus Irmãos eu me aventuro.
E por que teimo em guardar os livros se tenho certeza que nunca os lerei? Por cupidez ou esquecimento. Mais provavelmente porque os deixei na sétima prateleira de minha estante, onde quase nunca os alcanço. Amamos até mesmo os livros que nunca lemos, pois eles fazem parte de nossa história. O desmonte de uma biblioteca nos obriga a repensar o significado dos livros, a avaliar se continuamos ou não com eles, a desfazer um contrato amoroso que dura trinta ou quarenta anos.
O mais difícil em mudar de casa é a troca de hábitos. As casas são geralmente amplas e possuem cômodos largos. Deixamos a biblioteca proliferar em estantes de até quatro metros de altura. Alimentamos a ilusão de uma eterna juventude, de continuar capazes de subir em escadas e alcançar um livro esquecido, comprado na juventude.
– Ah! Desse aqui não posso me desfazer: Vento Forte, de Miguel Ángel Asturias. Comprei num sebo de calçada, ao lado do Cinema Trianon. O cinema nem existe mais. Também caiu de moda ler escritores latino-americanos. Era uma febre nos anos setenta e oitenta. A meninada não se liga no papo de América Latina. Usam camisa com retrato do Che, nem sei por quê. Os intelectuais de esquerda, no tempo da repressão, liam Onetti, Arguedas, Rulfo, Galeano, Vallejo e escutavam a música dos irmãos Parra. Torciam o nariz para o argentino Cortazar, porque ele se naturalizou francês, e queimavam os livros de Borges, dizendo que se vendeu a Pinochet. Os dois sobreviveram.
É bem difícil dar um novo destino aos livros que amamos e que nos custaram caro. Organizei uma biblioteca de cerca de cinquenta volumes e dei de presente a um sobrinho. Como gostaria de possuir aqueles livros aos quinze anos! Lembrei um comentário de Claude Lévi-Strauss sobre os índios nambikwara, em Tristes Trópicos. Davam roupas aos índios nus, eles as colocavam sobre o corpo durante algumas horas e depois largavam os molambos pelos chãos da tribo. Não passavam de trapos desnecessários às suas vidas.
Para muita gente os livros são trapos desnecessários. Ficaria magoado se nada significassem para o meu sobrinho. Sempre o presenteei com livros e recebi agradecimentos constrangidos. Acredito que nem todos são como José Mindlin, mas não custa demonstrar um pouco de interesse.
Doar livros é bem difícil. As bibliotecas públicas não têm espaço, nem funcionários que os classifiquem e cuidem deles. Em muitas delas os livros ficam amontoados e terminam se estragando. Morro de medo que os volumes de Pedro Nava sejam devorados por cupins e traças.
Os livros são o meu baú de ossos. Gosto de carregá-los como Rebeca, a personagem de Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão. Ela arrastava um saco com os ossos dos antepassados. Carrego meus livros comigo. De vez em quando deixo alguns pelo caminho. Essa frase é de péssimo gosto. Do mesmo mau gosto da classe média, que não pensa em cômodos para bibliotecas quando constrói apartamentos.
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